No universo das medidas socioeducativas em São Paulo o quadro, ainda que multifacetado, não deixa margens para dúvidas em alguns de seus aspectos centrais. Por exemplo: se por um lado o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a medida socioeducativa de internação com uma exceção, por outro lado sabemos que a aplicação dessa medida não raras vezes é banalizada, chegando a gerar sentenças mais severas do que para adultos em situações similares e a promover superlotação nas unidades da Fundação CASA.
Outro fato: adolescentes quase na sua totalidade pobres, na sua
maioria negros e pardos, são submetidos a um sistema de justiça rico e branco.
A classe social que tem nos familiares desses jovens suas empregadas
domésticas, garçons, porteiros, babás, motoristas, seguranças e manicures
(entre tantos outros empregos) é a responsável por acusar, julgar e condenar
seus filhos.
E os condenados são esses que, como nós, desde cedo aprendem que
consumir é a regra e que em nossa sociedade ter é o mesmo que ser. Pelo consumo
que afirma a existência, vivem numa luta desesperada eternamente presa ao
presente que sempre se renova em suas exigências. Mas, como ensinaria Bourdieu,
logo percebem que nessa guerrilha simbólica seu lugar é dos perdedores e que
nunca terão uma existência plenamente reconhecida. Que nunca terão humanidade.
Notam que, ao contrário dos filhos daqueles que lhes apontam seus dedos
julgadores, pouco podem num contexto de miséria, de desigualdades instituídas e
de sucateamento de políticas públicas. As exceções, que tendem a diminuir com a
obtenção do poder pelo governo federal mais branco e masculino desde o
mandato do ditador Ernesto Geisel (1974-1979), servem para essa mesma
elite alimentar discursos de meritocracia e justificar a imposição de seus valores
com instrumentos como polícia e internação.
Aliás, são esses jovens o mesmo alvo de uma polícia violenta
alimentada por uma mídia irresponsável e uma sociedade conservadora. Se a
polícia tem seu papel constitucional dentro da segurança pública, também tem
seu lugar como mecanismo militar de controle social a serviço de um grupo que
disso se beneficia. Na Grécia antiga poucos poderiam ser considerados cidadãos
– isso não é diferente nos dias de hoje. Enquanto na Rua Oscar Freire ou na Av.
Higienópolis o homem de bem recebe sua proteção contra “mendigos”, “pedintes
inapropriados” e “trombadinhas”, no Jardim Ângela, Brasilândia ou na Cidade
Tiradentes são conhecidos os alvos do extermínio e da tortura de Estado. Diriam
os compositores Eduardo e Dum-Dum que são em lugares como esses últimos que a
marcha fúnebre prossegue.
Portanto, quando falamos de medidas socioeducativas na cidade de
São Paulo, mais do que a aplicação da lei, estamos tratando de controle social. Assim como os princípios constitucionais são
violados todos os dias e são criminalizados movimentos sociais, também os
princípios que regem as leis voltadas para a infância e a adolescência nessa
área são vilipendiados e substituídos pelo recrudescimento de mecanismos de
controle.
Um, dentre alguns desses mecanismos, está hoje na ideia de exigência indiscriminada do quesito de obrigação de matrícula e frequência escolar. Há um discurso que centenas de nós já ouvimos de que não se deve abrir mão da obrigatoriedade da escola em todos os Planos Individuais de Atendimento. De que independentemente da idade, do desejo e do contexto de vida, todos os que cumprem medidas socioeducativas devem estar matriculados em escolas e deles deve ser exigida a frequência. Quando proferido, tal discurso já chegou a ser nomeado como "defesa intransigente de direito". Como a prática de um bem que produzirá muito mais frutos do que malefícios.
A defesa de direitos faz parte de uma guerra social. Ser
brasileiro é saber, ainda que à distância, que os direitos a educação, cultura,
saúde, moradia, assistência social, segurança, entre tantos outros, estão longe
de atingirem sua plenitude. Que aqui eles são privatizados e destinados a quem
por eles pode pagar. Num país de “terceiro mundo” no qual o termo “direitos
humanos” é capaz de produzir escárnio, uma avaliação como essa não é nenhuma
surpresa. Os movimentos sociais há décadas lutam pela efetivação de tais
direitos para todos. Não é de hoje que reconhecem sua importância. A busca pelo
direito a educação, por óbvio, faz parte dessas batalhas. Professores com
salários dignos, capacitações constantes, estruturas físicas adequadas,
currículos criticamente e democraticamente planejados, salas de aula com número
reduzido de alunos, integração com a comunidade compõem uma ínfima parte das
mudanças almejadas. E, no trabalho com adolescentes em cumprimento de medidas
socioeducativas, não há dúvidas de que o direito à educação deve ser plenamente
garantido. Um direito ainda mais em perigo frente ao estigma que os “L.A.”,
assim nomeados pejorativamente, carregam consigo.
Num contexto social, numa composição familiar, na história de
uma pessoa, na formação de um PIA, o exercício desse direito encontra
diferentes lugares. Não pode ser equiparada a situação de um adolescente de 12
anos com suporte de sua família que lhe dá condições e o estimula a estudar ao
caso de um jovem de 19 anos morador de periferia, recém ingresso no mundo da
paternidade e arrimo de família que foca no trabalho como meio para seu
sustento e dos que estão ao seu redor. Nos dois extremos, perspectivas
díspares. E entre um e outro, vários tons para diferentes vidas.
Dessa forma, quando alguém defende a matrícula e a frequência
escolar como política pública imposta para o cumprimento de uma medida
socioeducativa, ignorando os milhares de Planos Individuais de Atendimento que
deveriam ser constituídos cada um à sua maneira, silenciando avaliações
técnicas de profissionais capacitados atuantes em seus territórios, é de se
perguntar a que isso serviria. Se se trata de fato de defesa intransigente, por
que tão pouco se fala das práticas de tortura e de assassinato (nas ruas ou em
unidades de internação), crimes hediondos e contra a humanidade que tem nesses
mesmos adolescentes seu principal alvo?
A medida socioeducativa em meio aberto é também uma pena. Resultado de uma acusação de prática infracional, tem
caráter obrigatório com riscos de expedição de mandado de busca e apreensão e
de internação no caso de descumprimento. Quando seu cumprimento está atrelado
ao exercício compulsório do direito à educação, esse direito também corre o
risco de tornar-se um castigo. Risco esse também presente na coerção para o
exercício dos direitos à profissionalização e a atividade laboral na contramão
de Planos Individuais de Atendimento.
Não podemos ser ingênuos. A obrigatoriedade intransigente da prática de um direito, num contexto tão habituado a violações, não é a defesa de um grupo de adolescentes e foge da esfera da responsabilização. Sua vinculação compulsória ao cumprimento de uma medida socioeducativa em meio aberto apenas reforça seu caráter massificantes de controle e subjugação. Pobres controlados por ricos, negros subjugados por brancos da elite. Com o pretenso objetivo de salvação e resgate, valores de uma classe dominante se impõem a vidas que caminham na margem. Esse imperativo, no seu alegado bom mocismo, apenas as condena ainda mais. Sejamos claros: o direito, assim defendido, não passe de instrumento de domínio e punição.
Autor: João Bosco Baring
Emicida critica racismo no Brasil
Links interessantes:
file:///C:/Users/Jo%C3%A3o/Downloads/romao_corrigida.pdf
http://g1.globo.com/economia/noticia/2016/06/desemprego-afeta-mais-os-jovens-diz-estudo-do-ipea.html
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